Alfredo Soares-Ferreira *
O que resta de um não-debate sobre a nova identidade que o Governo decidiu imprimir à sua imagem é o vazio completo da forma e o triunfo natural do revanchismo primário. Nada que não se esperasse, como afirmação de uma pretensa identidade, mesmo assim, ao arrepio do repúdio por “posições extremistas”, patentes sobretudo no conhecido e propalado “não-é-não”. Se a nova identidade faz ou não o género desta equipa, saber-se-á muito em breve, ficando por agora a imagem do novo logotipo como uma afirmação de posição.
Mais adiante, ou seja, uns dias depois da cena programada, acontece o lançamento do “livro”. Um outro acontecimento, também devidamente arquitectado pela propaganda mediática, traz à luz do dia a sombra da obra “Identidade e Família”, onde pontificam teses ultra-direitistas sobre temáticas, cujas matérias foram absorvidas e resolvidas pela sociedade, no tempo devido e não parecem constituir, a não ser para os seus seguidores, qualquer espécie de problema. A obra contém seguramente uma ideologia, mas o seu lançamento parece ser o pretexto para mais alguma coisa. Arrumada a afirmação identitária da simbologia do passado, o tempo será o da convergência da Direita que nada tem a ver, antes pelo contrário, com o 25 de Abril. E a celebração dos 50 anos da Revolução incomoda mesmo os seus representantes, instigando-os a celebrar exactamente o oposto. Trata-se de um facto novo, a que não estaríamos habituados, mas que mais não é que o sinal dos tempos conturbados de retrocesso civilizacional, desenhado pelo pensamento único neoliberal e da sua faceta primária, assente na manipulação grosseira da realidade e no discurso enviesado do digital-reformismo e da negação da Cidadania. O horror, bem demonstrado na obra, de que são exemplos vivos, a emancipação da mulher, a liberdade para pedir o divórcio, ou o casamento homossexual, é na verdade a tentativa de ressuscitar os fantasmas do passado. Não terá sido fortuito ser Passos Coelho, o delfim da extrema-direita e protector do afilhado que diz representar mais de um milhão de votantes, a alertar contra a “destruição da família” tradicional e a “ideologia de género“. É mais um sinal de que algo estará a desenhar-se e que, a concretizar-se, poderá ser a machadada final do 25 de Abril, uma esperança acumulada da “gente boa” deste País.
O termo “identidade” reporta à qualidade de idêntico, semelhante, ou o mesmo e, consequentemente, identificador de algo que permanece. Tem a sua origem na filosofia, identificando um conceito que se utiliza para descrever algo que é diferente dos demais, porém idêntico a si mesmo. Para o filósofo alemão Jürgen Habermas, a identidade tem a sua origem na relação dialéctica entre o indivíduo e a sociedade e inclui processos de identificação própria e identificação reconhecida por outros, não sendo, por essa razão, imutável. Para o sociólogo espanhol Manuel Castells são as instituições que definem os papéis sociais e são os indivíduos que geram identidades, seguindo as construções identitárias um processo contínuo que se concretiza nas relações interpessoais e nas diversas representações.
No que diz respeito à imagem que o Governo quer assumir como identidade, o que há a dizer é simplesmente que ela (imagem) foi incorporada intencionalmente num processo vulgarmente designado por “sublimação”, ou seja, a passagem do estado imaginário para o estado sólido, o do objecto que constitui o logotipo. Pensado numa dimensão subjectiva e depois construído para agradar aos apaniguados, unidos num propósito comum de “afastar”, na sua ideia, a simbologia identitária “socialista”. Na verdade, a comunicação de marca é o processo de transferência da identidade em imagem. Esse processo está naturalmente ainda em curso, como o prova a apresentação do livro em apreço, que foi uma das peças, segundo o pensamento do apresentador, de atacar “a ideologia de género” e “a cultura de morte”. Estando em causa valores fundamentais adquiridos como a defesa da diversidade, da utilização do corpo e da livre assunção da sexualidade, o que no “livro” se defende faz pensar que ele será a cartilha que irá orientar a Direita no seu conjunto.
O logotipo como imagem de marca e a obra livresca representam, de forma indelével, uma forma de pensar e de agir. Não constituindo qualquer valor acrescentado, uma vez que nem uma nem outra, são inovação, aportam para um imaginário de adesão duvidosa. Ao mesmo tempo que “divertem” os seus autores, fazem emergir o pathos necessário, para que a emoção desperte os seguidores, fornecendo-lhes a energia, o entusiasmo e a esperança que precisam para a sua “campanha contra o socialismo”, assumida, hoje e agora, às claras. Aguardemos o desenvolvimento deste novo caminho e até que ponto ele será um rio que seca, ou que desagua no mar profundo da indiferença colectiva.
(Imagem: arte sobre obra cómica de Iotti)
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