Coronel Matos Gomes sobre a Revolução dos Cravos

Por Vasco Esteves / Pressenza *

Na entrevista que deu à Pressenza a 28 de Março, por ZOOM, apreciei os seus profundos conhecimentos do 25 de Abril e da Revolução dos Cravos, mas também a forma calma e diplomática como aborda mesmo os mais difíceis e controversos temas. O texto da entrevista, apresentado a seguir, foi ligeiramente encurtado nalgumas partes. A entrevista completa pode ser vista em vídeo no final deste artigo.

Imagens: Pressenza e arquivo pessoal

Carlos Matos Gomes é um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial. Nasceu em 1946 no Ribatejo/Portugal. A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais dos Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA). Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também a partir de 1982 uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz. Matos Gomes escreve regularmente neste blog.

A Revolução dos Cravos, pelo povo, começou logo no próprio dia 25 Abril 1974

Vasco Esteves: Hoje em dia, celebra-se o 25 de Abril apenas como a libertação do povo português do fascismo, e omite-se a dimensão anticolonialista do mesmo. O 25 de Abril foi uma libertação dupla! E também se omite a dimensão genuinamente socialista da Revolução dos Cravos, desencadeada depois e que se estendeu até ao dia 25 de Novembro de 1975. Portanto, tivemos até uma dimensão tripla!
Duma forma sucinta, o que foi para si a Revolução dos Cravos em Portugal? Foi aquilo a que o Sr. Coronel, na altura ainda capitão, chamou de “descolonização interna”, em comparação com a “descolonização externa” das colónias?

Carlos Matos Gomes: O 25 de Abril teve esse tema geral dos três “D”s: “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver”. A descolonização é fundamental, e está associada ao conceito geral de Liberdade. A Liberdade era essencial para os povos das colónias escolherem o seu destino, e era também essencial para que os portugueses pudessem decidir sobre um modelo de sociedade onde pudessem viver melhor do que antes – o que está ligado ao Desenvolvimento.

O 25 de Abril surgiu numa época da história da Europa e do mundo que era a da implementação do neoliberalismo, e foi assim completamente “contra-corrente“ relativamente às modas do “laissez-faire, laissez-passer”, do individualismo, da diminuição do poder do Estado e também do papel do Estado na sociedade. E é este modelo que está hoje em vigor e que é reproduzido, projetado e vendido pelas grandes máquinas de produção do pensamento. De maneira que, hoje em dia, o pensamento único é centrado na questão da Liberdade. O 25 de Abril tem um papel decisivo na questão da dignidade, quer dos portugueses quer dos povos africanos, mas tem também o grande papel – muitas vezes esquecido – de ter trazido Portugal para a modernidade. O fascismo, o salazarismo era um regime beato, retrógrado, e quase medieval. Mas, depois do 25 de Abril, os jovens portugueses começaram a relacionar-se com os jovens europeus, e os trabalhadores portugueses com os trabalhadores do resto da Europa. Portanto, o 25 de Abril rompeu com uma tradição de 500 anos em Portugal — a tradição de 500 anos fora da Europa — e reintroduziu Portugal na Europa.

E teve também um outro papel importante, que é o de ter proporcionado a libertação de outras duas ditaduras que ainda existiam: a ditadura espanhola e a ditadura grega. Como veio a ter também, mais tarde, um papel muito importante na abolição do Apartheid na África do Sul. E teve um papel único, que é silenciado deliberadamente, que foi o facto de as forças armadas (um dos aparelhos mais fortes de repressão social que há), num determinado momento da história, terem passado da defesa dos grupos oligárquicos que dominavam desde sempre os Estados, para a defesa dos grupos populares. Ninguém quer falar nisso.

Vasco Esteves: Isso foi uma coisa única na história, não é?

Carlos Matos Gomes: Absolutamente!

(Veja agora a entrevista completa)


* Vasco Esteves veio de Portugal para a Alemanha em 1969 como refugiado político. Em Portugal, foi dirigente estudantil, e na Alemanha lutou pelos direitos e pela organização dos imigrantes portugueses e apoiou mais tarde a Revolução dos Cravos em Portugal. Formado em Matemáticas, trabalhou na Alemanha 30 anos na informática. Vive atualmente em Berlim como ator. É considerado uma testemunha histórica sobretudo dos anos 60 e 70, quer da resistência contra o fascismo em Portugal, quer da primeira geração de imigrantes portugueses na Alemanha.

About the Author

Pressenza Agência
Agência de notícias internacional parceira dedicada aos temas Paz e Não-violência.

Be the first to comment on "Coronel Matos Gomes sobre a Revolução dos Cravos"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*