A Velocidade Incontrolada da Normalização

Por Alfredo Soares-Ferreira *

O filósofo franco-argelino Albert Camus escreveu um dia, “A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”. Quando assim escreveu não poderia imaginar a voragem do final do século anterior e muito menos do início deste. O “dar tudo”, que foi uma constante da sua vida, de coragem e de luta, é um conceito que enquadrado no pensamento dominante poderá ter porventura hoje uma leitura diversa. Sendo a velocidade um sinal da modernidade, valerá decerto considerar para onde vamos com tanta pressa ou onde nos conduz o ritmo, por vezes alucinante, de uma vida dependente e “sem a dimensão da processualidade da realidade”, como bem a definiu o cientista social norte-americano Alvin Toffler, nos seus escritos sobre a designada “revolução digital”.

Marcha nacionalista na Ucrânia. AfP.

O século que vivemos é palco da instalação de uma função especial, ainda com contornos vagamente definidos. Devidamente patrocinada pelo novo imperialismo do pensamento único neoliberal, a função normalização tem a centralidade que lhe é conferida pelo incremento de uma velocidade incontrolada, determinada pelos acontecimentos e apoiada pelos sólidos alicerces de um sistema mediático conveniente e dócil, no que reporta às fontes originais de uma doxa, imposta e terrivelmente eficaz. Nas democracias ocidentais, que parecem conviverem bem com autocracias e ditaduras, quando tal lhes convém, a função normalização adquire um formato particular e o que parecer ser uma regra para durar.

A normalização de um discurso moralista e aparentemente neutro, em termos de análise e de conteúdo, dita a regra. Hoje pretende-se, por exemplo, equiparar os designados “extremos partidários”, omitindo a vertente racista, xenófoba e muitas vezes fascizante da extrema-direita e tentando extremar artificialmente toda a Esquerda, para os perversos efeitos de confundir e iludir eleitorados voláteis e politicamente impreparados.

Um dos formatos particulares na Europa é a normalização dos regimes autoritários, de que são exemplos hodiernos, Polónia, Itália, Hungria, Suécia, Finlândia e Ucrânia. Dado que, pelo menos nestes países, o funcionamento do sistema depende de apoios directos ou indirectos de uma extrema-direita, que surge mais viva e activa que nunca. Os responsáveis da designada “União” convivem alegremente com a função de normalização em curso, com todas as consequências que daí advêm e cujo resultado directo é o estabelecimento de democracias corrompidas e atávicas, sinónimo de sociedades atrofiadas, domesticadas e consequentemente submissas.

“Ironicamente, a mesma Itália
que derrotou o fascismo em 1945
foi pioneira em branqueá-lo”

Sebastiaan Faber, professor holandês

O termo “normalização” foi introduzido, nos anos setenta do século XX, pelo filósofo francês Michel Foucault, que o utilizou para abordar a distinção entre o que é aceitável para uma sociedade e o que porventura sai da esfera de uma qualquer norma. Muito embora o recurso ao que vai contra a norma estabelecida possa ter algum reflexo positivo na afirmação dos direitos de determinadas minorias, o certo é que o próprio pensador o aproveitou para uma crítica severa ao sistema político, de tal forma que, hoje em dia, se mantêm válidas todas as considerações que fez, nomeadamente na introdução do conceito de biopoder, baseado numa técnica apropriada de poder que objectiva a criação de um modelo de vida destinado a produzir corpos economicamente ativos e politicamente dóceis. E onde a função normalização se introduz, sob a forma de uma biopolítica, onde o controle de uma sociedade sobre os cidadãos se faz quer através da consciência, quer através do corpo e com o corpo, ou seja, o governo da população como um todo.

Normalizar hoje é, por exemplo, branquear o fascismo. O professor holandês Sebastiaan Faber, citado por António Rodrigues, no Público de 29 de Julho, escreve na sua obra “Exhuming Franco: Spain’s Second Transition”, “Ironicamente, a mesma Itália que derrotou o fascismo em 1945 foi pioneira em branqueá-lo”. O mesmo perigo, existe na vizinha Espanha.

Normalizar é hoje também aceitar como normal a existência da pobreza. Não somente a que nos entra pelos olhos dentro, mas também aquela que se esconde por trás das estatísticas oficiais, as que nos dão conta, por exemplo, dos 400 mil idosos em risco de pobreza em Portugal, em Julho deste ano.

A função normalização parece avançar em velocidade incontrolada. No mínimo, um disparate completo, como nos conta e nos canta Cesária Évora, num poema popular cabo-verdiano chamado “Velocidade”. Nele se diz para acabar com o “disparate”, para “…não te darem o nome Velocidade”: “Olha que toda coisa forte // Um dia tem o seu fim // Se estás confusa // Não quero saber // Se a tua está na balança // Nós não somos culpados”. A velocidade incontrolada da normalização é, para além do disparate, um perigo constante, que pode resultar em acidente grave.

Catálogo Etsy.

O artista de rua britânico Banksy tem uma imagem deslumbrante, que ilustra a capa do livro da sua obra de 2005, “Wall and Piece”( “Guerra e Spray”, em português). É o “O Atirador de Flores” e ilustra um activista político de máscara a atirar um ramo de flores. Apareceu pela primeira vez em 2003, em Jerusalém, logo após a construção do Muro da Cisjordânia, retratando a ironia máxima, num País soberano invadido todos os dias, por Israel e com o beneplácito dos EUA e da União Europeia, uma outra normalização que, tendo dezenas de anos, ganhou a dupla faceta da dominação e da indiferença.

Na sua obra de 2015, “O torcicologologista, Excelência”, Gonçalo M. Tavares provoca-nos com esta pergunta, “A que horas começa a Revolução? E a resposta, não menos estimulante: “Às três. Na praça central”. Convém pois estar preparado. É bom levar qualquer coisa para arremessar, para além de um ramo de flores, há quem apenas entenda outro tipo de linguagem. Convém aqui lembrar a alegoria de Max Weber, que definiu o Estado “uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física“. Basta hoje encaixá-la na actual modalidade normalizada de dominação. Em vez do uso legítimo da força física (que ainda se mantém, em certas situações), estará seguramente a força brutal da dominação da finança, legitimada naturalmente pela versão neoliberal do capitalismo, uma selva de predadores nada naturais e propagandeada por agentes de comunicação que, conscientemente ou não, promovem diariamente verdadeiras lavagens ao cérebro, através de comentários orquestrados e, sempre que tal se mostra conveniente, notícias deturpadas e mesmo falsas. Bastará porventura um sinal para acordar, não sendo suficiente um qualquer despertador.

Num tempo que parece ser de resignação, devidamente abençoado na semana que corre, parece mais que evidente ser necessário começar a nova temporada, controlando a velocidade da normalização em curso. Para tal será necessário marcar pontos em todas as jornadas de luta, somando-os para conseguir a vitória final, a qual, pode significar uma época diferente, no mínimo, com mais consciências despertas.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "A Velocidade Incontrolada da Normalização"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*