A Política como acto natural

Por Alfredo Soares-Ferreira *

As condições, particularmente adversas aos trabalhadores, com que o ano de 2022 terminou determinam a necessidade de olhar e reflectir sobre a governação do País, numa perspectiva crítica, quer do modo particular como se governa, quer ainda das possíveis soluções para a multiplicidade de problemas que afectam os cidadãos, muito especialmente aqueles que sofrem sempre as consequências das medidas penalizadores resultantes de políticas erráticas, ou mesmo erradas, de administrações e governos.

A questão da política, de como se faz política, de como a política interfere na vida dos cidadãos, é a questão central. Será de equacionar, porque na verdade faz pensar e deveria fazer reflectir, a razão por que muita gente diz não querer nada com política, quando é a política que determina a sua existência. Numa democracia, é, ou deveria ser, dos partidos políticos, a grande responsabilidade, uma vez que lhes compete, para além da tarefa natural de tomar e administrar o Poder, a pedagogia necessária e conveniente a um panorama que hoje é mediatizado pelas redes sociais, com todos os inconvenientes que daí advêm. Importante seria saber também as razões pelas quais as figuras políticas ligadas à extrema-direita têm tido sucesso em todo o mundo e estão a contribuir para a degradação do debate democrático, da livre circulação de ideias e das necessárias utopias que caracterizam uma sociedade decente. Há quem considere, por exemplo, que o panorama mediático mais fragmentado contribuiu para o desaparecimento de um consenso social em torno do que é ou não factual. Tudo isto é hoje evidente, pelo menos na abordagem das questões políticas centrais, nas sociedades modernas, particularmente na ocidental, onde existe uma percepção errónea sobre a democracia participativa e a sua preeminência. Parece por vezes existir alguma relutância, quando não desinteresse, em que os cidadãos participem na vida política. Alguns partidos políticos, nomeadamente aqueles que têm mais experiência de poder, insinuam, ainda que não explicitamente, que a participação tem a ver com o voto nas urnas e pouco mais. Ou seja, dão valor formal à democracia representativa e prestam muito pouca atenção à democracia participativa, desmerecendo-a, ou desvalorizando-a.

O declínio do centro político é outra evidência do desgaste das ideologias que o sustentam, bem como a consequência da ascensão da extrema-direita e da inculcação que a sustenta. É um declínio evidente, com a banalização do debate no centro das atenções, com a industrialização da comunicação social a proporcionar o maior dos desvios na formação de uma opinião pública tergiversada pela imposição de uma tipologia de pensamento uniformizada, que enfraquece o diálogo e a retórica política. A política deixa de ser natural, para passar a ser uma encenação, por vezes um espectáculo mediático em que o cidadão passa rapidamente para a condição de actor, figurante ou secundário.

“Modern music and musicians”, Elson, Louis Charles, 1918.

Os casos, alguns inacreditáveis, outros verdadeiramente inaceitáveis, que ultimamente têm vindo a público, não demonstram apenas a incompetência de quem nomeia e de quem governa. São um triste exemplo de como a política pode ser um refúgio confortável para burocratas, carreiristas e arrivistas. Alguns são apenas a imagem de uma relativa mediocridade. Outros, de natureza algo obsequiosa, contêm uma leniência nítida. De todos, porém, se faz, de imediato, um aproveitamento por vezes demasiado, na tentativa de generalizar e de banalizar. Restam os de natureza grave, particularmente do ponto de vista jurídico, que estão na alçada da lei e que se espera sejam devidamente sancionados. Mas fica sempre uma sensação de desconforto relativamente ao emissor do problema, um phatos difícil de ultrapassar.

Pode questionar-se, com algum sentido, se e como, o cidadão reage à ratoeira que lhe foi montada pelo sistema de dominação económica e política. Ou por que razão simplesmente não parece reagir. As tentativas pontuais de reacção, consubstanciadas em lutas pontuais, não serão porventura suficientes para sequer abalar o modelo de dominação. As declarações dos governantes, que sempre exaltam os feitos cometidos pela sua administração, ofuscam as reacções, por vezes desesperadas, daqueles que vêem o seu poder de compra sempre a cair, o seu salário a não crescer para suportar o custo de vida, os custos com a sua habitação (quando a têm) a aumentar, a sua saúde a ser precarizada porque não se investe no sector, a energia e os combustíveis sempre mais caros. Não basta já ao que se assiste, num Ocidente perdido numa guerra fabricada, alimentada e instigada, com uma crescente penalização para aqueles que apenas têm a sua força de trabalho e que acabam pagando todos os desmandos. Porque afinal tudo foi agravado e parece não existir vontade política para mudar. A “naturalidade” da política que deveria prevalecer sobre a indiferença continua a marcar pontos, numa sociedade esquisita que privilegia a subjugação.

Talvez, por força de uma situação em que a política poderia marcar algum espaço para a análise e o debate, faça sentido reflectir na recente entrevista do Secretário-Geral do PCP ao DN, datada de 9 de Janeiro. A leitura que Raimundo faz da situação política actual, quer de um possível quadro futuro, eleitoral ou de intervenção social, permite detectar algumas pistas, quer do ponto de vista formal, que tem a ver com o relacionamento entre PCP, BE e Partido Socialista, na perspectiva de uma eventual partilha de poder. A circunstância de o PCP admitir poder participar num governo com o PS é uma das hipóteses avançadas desde já, muito embora o Partido não queira falar ainda de “frentes eleitorais”. A constatação que o PCP faz, dizendo que existe acordo com o BE em 90% dos casos, pode revelar uma realidade que por vezes parece ser ofuscada pela postura dos dois partidos ao valorizar a autoria e a paternidade nesta ou naquela medida. Uma constatação importante feita por Raimundo é de que algumas pessoas deixaram de olhar para o PCP como o partido que lhes responde nos seus objectivos e ainda que há muitas pessoas que, não estando no seu Partido, estão na verdade juntas nesta ou naquela batalha, ou simplesmente interessadas em ter uma intervenção política activa, necessária numa batalha mais geral.

Em uma das suas obras de referência, dedicada à análise e crítica políticas, o filósofo alemão Jürgen Habermas aborda o processo de “modernização ocidental”, salientando a relativa insignificância da mudança, que parece limitar-se ao domínio do estrutural. O seu estudo sobre a história dos movimentos sociais do Ocidente propiciou, em termos de aprendizagem moral, algo que, desde então, deve ser identificado e preservado como guia da acção política. Ao propor, pela primeira vez, um conceito dual de sociedade, onde são explicados e desenvolvidos os conceitos de técnica de ciência no contexto do designado capitalismo tardio, simultaneamente como força produtiva e como legitimação ideológica, Habermas ensaia um pensamento crítico para tentar perceber os aspectos positivo e evolutivo, bem como o significado universal do desenvolvimento ocidental.

A sua contribuição, aproveitada e aprofundada em várias experiências do final do século XX e do início deste, permite relançar o interesse subjectivo na visão da política como arte natural, intrínseca ao ser pensante. E a medida objectiva da necessidade, vital para o cidadão, em revitalizar a participação na vida política, instalando uma vitalidade democrática, condição primeira para o dinamismo cidadão, na imposição da verdadeira agenda política em relação à qual o Estado deve actuar e agir.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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