Alfredo Soares-Ferreira *
Muito embora existam argumentos que a definem como anacrónica, a dicotomia esquerda/direita permanece actual, como no século XVIII. Foi em França, em 1789, que Luís XVI aceitou a representação das classes sociais, na Assembleia Constituinte, colocando à sua esquerda os que se opunham ao veto legislativo e, à sua direita, os apoiantes reais e ao veto. Muitos e os mais variados autores se vêm debruçando sobre a dicotomia, acrescentando-lhe nuances relativas aos vários ismos. Contudo, foi o filósofo político italiano Norberto Bobbio que, na sua obra “Direita e Esquerda, Razões e Significados de uma Distinção Política”, sustentou que a estrutura política é originalmente dicotómica, apesar de a considerar uma “banalíssima metáfora espacial”. À Direita, a afirmação dos valores da tradição, na moral nos costumes, a preservação da lei e da ordem e o direito inalienável da propriedade. À Esquerda, a igualdade, liberdade e fraternidade, enfim, a mudança e a revolução.
Num artigo publicado na semana passada, a advogada Carmo Afonso lamentava o facto de a Esquerda se ter deixado “encurralar”, na discussão das mais diversas questões, nomeadamente as socioeconómicas. “A esquerda está sempre a defender-se e a justificar-se e não acusa a legitimidade que é precisa para ser ela a exigir explicações”, assim escreve Carmo Afonso. Fala mesmo em “interrogatórios”, situação aliás notória em qualquer programa da comunicação social burguesa, em que o funcionário de serviço, entrevista um qualquer político da área das esquerdas. Aí, o entrevistado é sistematicamente “arrasado” por interrupções e desvios, na intenção clara de o tentar conduzir a um terreno pantanoso, onde apenas se admite uma opinião e um pensamento. Aliás a introdução recente, na retórica da Direita é precisamente a evocação constante do preconceito ideológico, para rotular tudo o que seja diferente dos seus pressupostos.
A questão é que tal não acontece por acaso. A circunstância de a Esquerda, particularmente na Europa, se ter aparentemente fechado em comunidades próprias, consagrando-se a pequenas lutas particularmente sensíveis, nas questões de género, do clima, ou outras, sem as enquadrar devidamente na luta de classes, conduziu algumas organizações partidárias a uma exposição permanente e contínua, marcada pela burguesia dominante, com rótulos como “esquerdismo”, “extrema-esquerda”, “esquerda radical”. Por muito sérias que sejam as teses defendidas o que é certo é terem provavelmente o significado particular de uma certa renúncia à tomada de poder. A continuada espera de uma ruptura, ainda que simbólica, com o poder neoliberal, conduz inevitavelmente a derrotas significativas e a um cansaço de militância. Entretanto, o poder continua a existir, do outro lado, monopolizado pelas oligarquias de sempre e hoje bem suportado e melhor interpretado por elites que outrora o renegariam. Assinale-se, na velha e decrépita Europa, a contínua degradação dos partidos que usam, de forma enganosa, a designação “social-democrata” e “socialista”, ao mesmo tempo que emergem do profundo vazio do centrão, outros com designações grotescas e festivaleiras, encostados perigosamente à extrema-direita.
“Qualquer labirinto tem sempre uma saída. Este, em que a Esquerda poderá estar, tem ainda uma outra, que implica quebrar os muros que o suportam”
Uma das questões centrais em Marx e Engels, fundamental para a compreensão do funcionamento das sociedades é a metáfora da base e da superestrutura. Como num edifício, onde na base (ou infraestrutura) assentam as relações de produção. Nessa estrutura se vão edificar todas as formas de pensar, as visões do mundo em que se baseia a componente ideológica de uma classe, uma superestrutura que compreende a política e a filosofia, a cultura e a arte, as ciências, as crenças e religiões, enfim, as mais diversas formas de consciência social. O Estado, que é a superestrutura legal e política, tem ao serviço, a polícia e o exército, os tribunais e a burocracia, para fazer cumprir as leis, determinadas pela classe dominante. Então, a função da superestrutura é manter as relações económicas que constituem a infraestrutura, reforçando assim os interesses da classe social dominante.
A aquisição deste capital de conhecimento é crucial, para uma interpretação correcta dos fenómenos sociais. Bem como para a “fabricação” de ferramentas próprias para efectivar a mudança social. A Esquerda sabe isso e deve assumir esse capital, num momento particularmente difícil, onde escasseiam as opções ao consenso neoliberal. E, mesmo as que existem, parecem não serem claras nem perceptíveis para os cidadãos.
A Esquerda deve fazer uma demarcação clara. Na retórica e na acção. Com um novo discurso e uma linguagem própria, que devem constituir atractividade suficiente para uma cidadania militante, inteligente e informada. Há demasiadas evidências, a nível mundial que exigem debate, activismo e influência. Particularmente na Europa, onde não deve existir qualquer hesitação em chamar pelo nome próprio a ditadura imposta pelas autoridades não-eleitas da auto-designada “união europeia”. Em que deve ser denunciado o contínuo e permanente apelo à guerra e ao aumento de gastos com a “defesa”, não vacilando em exigir o desmantelamento da NATO, uma organização declaradamente ofensiva e belicista, responsável directa ou indirectamente por todos os conflitos, a nível mundial. Ou ainda, na firmeza em apresentar os efeitos perniciosos da moeda única, que beneficia apenas um país. E também em mostrar a evidência de a Europa se estar a tornar uma colónia dos EUA.
Todas estas e outras questões devem ser assumidas, numa agenda política de defesa dos cidadãos e das suas condições de vida e da luta permanente contra o poder neoliberal.
O que está a acontecer com a Esquerda, ao ter de se justificar permanentemente, sobre o que pensa e que o pensa fazer, é deveras preocupante. Qualquer labirinto tem sempre uma saída. Este, em que a Esquerda poderá estar, tem ainda uma outra, que implica quebrar os muros que o suportam. O que é seguramente necessário para uma acção comum. A necessidade assim o determina, pois em caso contrário, as consequências sociais poderão ser devastadoras.
A esperança deve sempre existir e ser reforçada. Tal como explica o filósofo francês Daniel Bensaïd, no seu livro “Fragments mécréants”, de 2005, “o revolucionário é um homem de dúvida oposto ao homem de fé, um indivíduo que joga nas incertezas do século e que põe uma energia absoluta ao serviço de certezas relativas”.
É nas certezas e nas incertezas que se joga hoje o futuro da Esquerda.
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