Parte 1
Por Alfredo Soares-Ferreira *
Quase nos cinquenta, o calendário assim o determina, Abril continua a ser um marco de alegria pela queda do fascismo e na esperança por dias melhores. Esta poderá ser a forma mais simples de colocar a questão do legado de Abril de 1974, tantos anos passados, tantos avanços e recuos na luta de quem não tem mais que a sua força de trabalho para vender no mercado, de quem, no dia a dia, não consegue descobrir o que se passou, entretanto, para não ver melhorada a sua condição. Mesmo com todos os ganhos e contabilizando devidamente todas as perdas, apenas existe ainda uma certeza, que se afirma na necessidade de continuar a luta. Afinal, a mesma luta de sempre.
Se questionarmos o que resta de Abril, encontraremos decerto algo para dizer. Subsistirão algumas dúvidas, ou mesmo muitas. Problemas serão descritos e minuciosamente detalhados, em diversas áreas. Questões várias serão levantadas sobre modelos e estratégias, sobre formas de organização que melhor se adequam aos interesses dos cidadãos, sempre com especial atenção para aqueles que vivem do seu trabalho, pois são eles a riqueza maior das sociedades. Análises dos diversos quadrantes, quer dos partidos políticos, quer das associações, políticas e outras, quer ainda dessa força imensa, representada pelos órgãos de comunicação social, que hoje em dia, são pertença de grandes e por vezes gigantescas empresas e que determinam, de certa forma, a informação e a comunicação. Tudo irá convergir sempre num ponto essencial: o futuro do País, que não está isolado do que se passa, na Europa e no resto do mundo, tamanhas são as implicações de qualquer decisão e determinadas que são as causas e consequências do funcionamento do modelo económico e financeiro, que tenta moldar o mundo com políticas determinadas e acções imediatas, no que reporta ao comportamento esperado de governos e administrações.
Restam de Abril as palavras de ordem
[…] “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”
ou “O Povo unido jamais será vencido”
Estamos situados geograficamente na Europa e, do ponto de vista estratégico submetidos a uma união, que o é apenas para garantir a supremacia da Alemanha e a sujeição completa da periferia, em que dizem nos situamos, aos ditames de um directório não-eleito e às políticas do neoliberalismo, que retirou ao nosso País “quase todos os instrumentos relevantes de política económica – comercial, monetária, cambial, regulatória, de crédito, industrial...”, no entender do professor João Rodrigues, investigador e especialista em economia política e história do neoliberalismo. Nessa medida e estando dependente das regras determinadas por Bruxelas, o desenvolvimento do País está condicionado e deveras comprometido, uma vez que tem sido norma de todos os governos aceitar e cumprir, sem qualquer juízo crítico, as referidas regras e as suas especificidades, nomeadamente as que reportam ao défice e à dívida.
Muito embora algumas tenham passado de moda, restam de Abril as palavras de ordem que sempre se ouvem nas manifestações, quer nas de Abril e Maio, quer nas outras, onde os trabalhadores procuram, no mínimo, lembrar que algo falta fazer, cumprir ou remediar. “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais” ou “O Povo unido jamais será vencido”, porventura as mais emblemáticas, parecem ainda ser um factor de mobilização e participação, na rua, na fábrica, ou até, hoje em dia, nas redes sociais. Outras, com menos repercussão, não deixaram provavelmente a marca que mereciam, como, por exemplo, “Sem Cultura não há Liberdade”. E outras ainda, que desapareceram, por morte natural, como “A terra a quem a trabalha”, ou “Avante com a Reforma Agrária”. Todavia encontramos, quarenta anos depois, as que mostram a condição de quem passa dificuldades e continua a não ter escapatória que não seja a de as afirmar e gritar bem alto, para mostrar protesto e repúdio, como, “Casas sim, despejos não”, “Trabalho digno sim, precariedade não”, ou “Não ao Orçamento da Exploração e do Empobrecimento”. E resta finalmente aquela divisa, feita poema na boca do Sérgio, que parece constituir ainda um mote comum, talvez por resumir quase tudo em 6 versos, “A paz, o pão//habitação// saúde, educação//Só há liberdade a sério quando houver//Liberdade de mudar e decidir//quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.
Há quem sustente, sobretudo quando se fala do que se conseguiu, que estamos muito melhor que antes do 25 de Abril. Sim, estamos melhor, porque fizemos de um golpe de estado, uma Revolução. Todavia, hoje são outras as exigências, o regime democrático assim o impôs. Nas novas sociedades do novo século impõe-se a exigência que resulta, por exemplo, do aumento da esperança de vida, com a resposta devida a uma melhor qualidade de fruição do lazer e da cultura e não, como tem acontecido, à exigência de trabalhar durante mais tempo, uma perversidade intolerável. O direito a uma habitação condigna e a um trabalho decente e bem remunerado, inseridos num estado social pleno, deveriam contemplar os direitos naturais relativos à saúde e ensino públicos e de qualidade. Assim não teriam de fazer sentido palavras de ordem como as que se gritam hoje nas ruas, por necessidade absoluta, como esta, que soa como indigna nos tempos que correm, “O custo de vida aumenta e o povo não aguenta”.
Resta de Abril a certeza em afirmar o que será necessário fazer, quer para consolidar o que se alcançou, quer para exigir mais. Precisamos de mais. Na verdade, de muito mais. Mais SNS, mais Escola pública, mais e melhor justiça, mais e melhor habitação, mais e melhor trabalho, mais e melhores salários. Os cidadãos necessitam de mais tempo de lazer, de mais cultura de porta aberta. Urge erradicar do País um imaginário de inferioridade permanente, que parece condicionar a capacidade de participação dos cidadãos na vida pública e política do País e que significa um elevado défice democrático.
Há uma razão para citar, hoje e agora, Jorge de Sena. Porque constitui um legado de enorme importância, mesmo que seja apenas o da esperança. Aquando do falhanço de um levantamento popular contra a ditadura fascista, designado por “Golpe da Sé”, Sena é obrigado a deixar Lisboa, para se exilar no Brasil. Estávamos em Junho de 1959, quando escreveu um poema épico, a “Carta a meus Filhos (Os Fuzilamentos De Goya)”, onde imagina “Um mundo em que tudo seja permitido // conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer//o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.”
O grande escritor e poeta da língua portuguesa, mas que ao mundo pertencia, que um dia disse, “Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade”, acabaria por morrer três anos depois da libertação. Fica aqui de Abril, a cor da Liberdade.
[continua na próxima semana, com a Parte 2]
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